Segunda semana

Minha mãe vive na dúvida. Coitada. Cada um que vem aqui em casa fala uma coisa, e ela acha que está fazendo tudo mal. Ela tenta não se influenciar, mas não consegue porque acredita em tudo o que dizem. Pois é... O problema é que ela não escuta justamente a pessoa com mais conhecimento de causa: eu!

Por que essa mania de querer que eu vá dormir quando eu não estou com sono? Não consigo entender. É a mesma história de não poder comer. Não comer com fome? Dormir sem sono? Por que será? Eu choro muito à noite, vocês já sabem porque. Minha mãe fica achando que estou com cólica, ou lutando contra o sono. Eu não acho não. Só estou sendo forçada a ficar em um lugar onde meu corpo não quer estar.

Aliás, acho que eles - os adultos - esquecem de ouvir o próprio corpo. Não sabem nem quando têm sono nem quando têm fome. E fazem tudo por horário. Esse é o mundo dos horários, vocês se preparem!

Mas tenho outro assunto incrível pra contar hoje: Tem um homem que não sai daqui de casa. O nome dele é PAI.  Não entendi ainda bem a função dele, mas ele passa muito tempo aqui comigo e com a MINHA mãe. Eu não me lembro de ter ouvido falar da existência desse cara...

Devo ter faltado em alguma aula no curso de preparação para vir para a Terra. Mas com certeza falaram sobre isso porque ele dá muita opinião e – aqui vem o ponto principal – ele dorme na cama da minha mãe! Vocês acreditam que eu tenho que ficar no carrinho - AO LADO DA CAMA DA MINHA MÃE -  e ele dorme NA cama da minha mãe!? Vocês bem que podiam assistir a essa aula e me explicar, porque por aqui todo mundo o trata com muita  naturalidade e ninguém estranha ele estar todas as noites aqui em casa.

Mas tenho que dizer algo a favor dele: ele concorda comigo sobre isso de ignorar os horários. Foi ele quem convenceu minha mãe a não me deixar ficar no berço quando não quero dormir. E como ela não gosta de me deixar chorando sozinha, ela concordou. E é claro que eu ficaria berrando se ela me deixasse lá. Já contei pra vocês que, como minha mãe é muito indecisa e vive mudando de ideia, essa é a única regra que – por enquanto - ela leva realmente a sério: nunca me deixar chorando sozinha. Ela tem medo que eu fique traumatizada, sorte a minha! Ela prefere que eu seja mimada do que insegura.

Os adultos são engraçados! Ela não precisava se preocupar tanto, ninguém fica mimado com menos de um ano de idade!

Sobre as novidades do mundo, estamos na semana da Consciência Negra. Pelo que eu entendi, essa semana existe para lembrar das coisas ruins que os homens que são pretos já passaram. Parece que fizeram a maior confusão nesse mundo e em alguma época os pretos viraram escravos. Esse assunto todo é complicado já que de onde a gente vem não existe diferença de cor nem escravo.

E ser escravo me pareceu uma coisa muito estranha. Pensei até que deve ser o pior tipo de vida que existe nesse planeta. Mas pelo o que eu entendi isso não existe mais. Acho que era assim: eles eram forçados a trabalhar para os brancos, eram tratados com violência e não tinham nenhum poder de decisão. Não tinham a Liberdade – ouvi dizer que isso é algo muito importante – mas eu ainda não sei o que é.

Como vocês sabem, minha maior fonte de informação são as visitas e ninguém falou sobre a Liberdade. As visitas de ontem conversaram com a minha mãe e com o moço chamado Pai sobre o Racismo que ainda existe. Sobre isso do Racismo, eu acho que aprendi: é quando alguém não gosta de gente com pele de outra cor.  Por que será que não gostam? Isso eles não explicaram. Muito difícil de entender.

Vocês lembram – se não tiverem faltado nessa aula - que podemos vir pra cá de várias cores? Dependendo da mãe que a gente escolhe, podemos vir preto, amarelo, vermelho ou branco.Eu não enxergo ainda direito, então não sei com que cor eu vim.

Meu olho está pesando, minha mãe tá me oferecendo colo e eu vou dormir.